10/07/2009

Inspirado nos contos de Nelson Rodrigues...


FIDELÍSSIMA


AMADEU - Essa é séria mesmo. Como essa nunca vi!
Nelsinho, que era experiente e entendia de mistérios como ninguém, profetizava ao amigo:
NELSINHO - Mulher séria até existe, mas nessa aí eu não acredito.
AMADEU - Por quê? Como assim? Você não a conhece... ou conhece?
(Pausa. Nelsinho acende o cigarro, joga fora o palito de fósforo e diz):
NELSINHO - Conheço o marido. É o seguinte: Num casal, há fatalmente um infiel, compreendeste? Ou a mulher ou o marido.A existência de uma vítima é inevitável. E aquele sujeito tem vocação para marido enganado.
Amadeu, convicto do comportamento da amada e, no fundo, maravilhado por essa virtude, continua:
AMADEU - Estou te dizendo! Com ela ninguém consegue nada. E com aquela carinha rapaz, de que sabe tudo. Ah... Com aquela carinha de anjo e aquele olhar de fêmea! Quem diria... Não trai em hipótese alguma. E eu fiquei que nem bobo. Pasmo!
(Nelsinho bate no ombro de Amadeu e ri. Amadeu insiste):
AMADEU - Você não acredita! (balança a cabeça, pensativo) Mas quem acreditaria… (pensativo) parece que nasceu pro pecado e quando chega a hora, nada acontece. Firme como o pão de açúcar ela disse não.
NELSINHO - Tá jogando contigo, meu caro, não percebe?
AMADEU - Você ta dizendo isso porque não viu. Não te culpo, eu mesmo não acreditaria. Nunca podia imaginar que alguém se transformasse tanto, de um minuto a outro. Quando tentei beijá-la, ela quase deu um pulo. Toda aquela sensualidade, aquela mistura deliciosa de ingenuidade e pecado, acabou numa frieza de levar qualquer um pro fundo do poço.
NELSINHO - Guarde minhas palavras, meu amigo: Só confie na fria, só na fria. E a tua pequena não é fria nem aqui nem na conchichina. É doce e triste. 
AMADEU - E linda! Mais ainda: é interessante! Sabe cativar qualquer um. Poderia ter quem ela quisesse. É a Glória, literalmente, mas jura que é fiel e que não abre mão de ser assim. Fazer o quê? Me afirmou isso numa frieza aterrorizante. Daí veio minha convicção. A transformação dela não me deu outra escolha, senão acreditar. Paciência! Cheguei a pensar: Não é possível... Será que me enganei? Será que ela é fria? Vai ver que foi fria até mesmo na lua de mel...
NELSINHO - Vai por mim. Tem coisa aí...
AMADEU - Não... Ela é fiel sim. O marido é que tem sorte. Desgraçado sortudo! Já me imaginei dizendo a ele: Você, seu desgraçado, é um cara de sorte!
À noite, em casa, Nelsinho estava pensativo. Dizia de si para si, diante do espelho: “Aí tem dente de coelho”. Era inevitável a curiosidade que o dominava. Decidiu:
NELSINHO - Eu vou matar essa charada!

A Glória

GLORINHA - Já te disse, Amadeu. Se você quer apenas uma amizade despretensiosa, tudo bem. Mais que isso não. Nunca!
AMADEU - Mas o que é isso, Glorinha? Sou tão terrível assim? Você me tira do caminho, sem mais nem menos. Me acha feio, é isso? Tá certo, não sou nenhum príncipe, mas não sou tão asqueroso assim.  Ou me acha velho? Sou mais velho que você. Claro, tem rapazes da sua idade, mais bonitos e mais interessantes do que eu...
GLORINHA - Pára com isso, Amadeu. Sou fiel, é só isso. Não importa se é bonito, feio, velho ou novo. (irritada) Apenas sou rigorosamente fiel. Dá pra entender isso? Você me olha como se eu fosse de outro mundo. Um ET. No outro dia chegou a me chamar de fria. Ora bolas! Só há dois extremos?  Ou você é fria ou uma... (baixa a voz) puta? Não sou fria se é isso que você quer saber. Eu gosto! E muito até!
AMADEU - Não gosta comigo. É isso.
GLORINHA - (Convicta) Não adianta vir com esse papo. NADA me fará mudar de opinião. Sou fiel e está acabado. Se insistir, a nossa amizade acaba aqui. (Pausa. Amável) Poxa Amadeu, será que não pode haver amizade entre um homem e uma mulher? Só te peço isso, uma amizade despretensiosa. Acredite que cultivei ao longo de todo esse tempo um carinho enorme por você... Rimos juntos, tivemos uma afinidade... ou não? Para mim, é fato, somos amigos. (Pausa) E só.
AMADEU - Tá bom, não precisa ficar jogando eternamente isso na minha cara. Eu já sei que não sou bom o suficiente pra você e páreo pras suas conquistas.
GLORINHA - Olha aqui Amadeu, não admito...
AMADEU - Tá certo. Você me desculpe. Me excedi. Acho que teu negócio é seu marido mesmo.
(Glorinha silenciou. Amadeu finaliza):
AMADEU - Esse assunto morre aqui.
(Glorinha sai e deixa Amadeu pensativo).
De fato, nunca mais tentara uma aproximação carnal de Glorinha. Manteve a amizade a custa da insistência da amada e embebedava-se cada vez mais. 

A notícia

Certo dia, Amadeu estava no bar de costume e chega o amigo.
NELSINHO - Amadeu, se prepara meu caro, tenho uma bomba pra ti.
AMADEU - Mas o que é?
NELSINHO - Eu te disse que havia alguma coisa de errada nessa história. Eu nunca erro. Eu senti. (Ri) Farejei. Eu disse que a fidelidade de sua Glória não me convencia. (Vaidoso) Disse ou não disse?
AMADEU - Ô Nelsinho, qual é, se tem alguma coisa pra dizer diz logo que esse mistério é pior que qualquer coisa...
(Amadeu voltou pra sua cerveja).
Nelsinho olha Amadeu em silêncio, como se, em vão, tentasse escolher as palavras. Enche, para si, um copo de cerveja e diz:
NELSINHO - Sua Glorinha tem um amante.
(Amadeu levanta-se da cadeira, em câmera lenta, quase sem ar).
Faz a pergunta patética:
AMADEU - O quê?
NELSINHO - Sua pequena tem um amante.
(Amadeu senta de novo, ainda com falta de ar.).
Nelsinho vaidoso com a sua habilidade no assunto, não percebe que o amigo passa mal. Continua:
NELSINHO - Nunca acreditei nessa fidelidade. É ou não é? A mim ninguém passa pra trás. (Ri ignobilmente) A mulher pode ser infiel ao marido, mas ao amante, nunca!
Amadeu, já refeito do choque e mais furioso do que nunca, levanta e exige:
AMADEU - O endereço. Quero o endereço, horário, dia do encontro, tudo.
(Nelsinho anota tudo no papel, dá ao Amadeu que lê e exige):
AMADEU - O nome, o nome do desgraçado!
NELSINHO- Armando. (Com ironia) Conhecido por ela como Armandinho.
AMADEU (Com ódio) – Armandinho!
Amadeu deixa o amigo na mesa e sai, numa pressa e impulsividade que só os traídos conhecem.

(Amadeu está em casa e pega o revólver na gaveta. O contempla por um tempo e sai.).

O flagrante

(O casal está se amando).
AMADEU (arrombando a porta) – Cínica! Cínica! Não é fiel a teu marido coisíssima nenhuma!
(Amadeu está com a arma apontada pro casal, que se cobre rapidamente com o lençol).
GLORINHA (Glorinha se levanta, em pânico) – Que isso, Amadeu?! Abaixa essa arma!
(Armandinho se esconde atrás da Glorinha)
ARMANDINHO - Peraí... peraí… Vamos ter calma... vamos conversar...
(Amadeu aponta a arma para Glorinha)
AMADEU – Ou você trepa comigo também ou eu te mato!
(Com uma calma assustadora, ela da um passo à frente e encosta a cabeça na arma. Amadeu, dessa vez, recua assustado).
GLORINHA - Então, você vai ter que me matar porque, viva, eu não vou transar com você!
Amadeu mete um tiro na própria cabeça.


Autora: Geórgia Damatis.


Colorido, só no teatro!

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