09/08/2009

VESTIDO DE NOIVA, de Joffre Rodrigues - A belíssima adaptação da peça mais famosa de Nelson para cinema

A adaptação do roteiro foi uma junção entre a prioridade na fidelidade ao texto com o fazer cinema. Além disso, desde que Ziembinski adaptou a obra para os palcos em 1943, tendo, para isso, inovado em técnicas de iluminação a fim de dar conta com fidelidade aos três planos que constituem a obra, ninguém mais havia se atrevido a tentar. 

Importante notar que o início do filme é também o início da vida na casa (que é um tema importantíssimo da obra), inclusive sendo mobiliada. Começa o filme, começa a vida na casa. A poesia e a leveza do plano da alucinação é o ponto mais forte da obra, pois é o que buscava a "alma" de Alaíde e ela foi atendida no filme, enquanto buscava legitimar seus sonhosO peso da realidade foi bem dosado, mesmo atendendo, e muito bem, a um subtexto extremamente realista. A memória mostra as "baixas" motivações das personagens e a visão bem humorada das situações desagradáveis foi uma opção genial, que não mudou o caminho do texto, mas a forma de contar. Ótimas músicas no bordel, com roteiro cheio de detalhes significantes, percebidos não só de uma vez, mas a cada reprise do filme, encantando por seus significados. Belíssimos elenco e direção de atores, que estão harmonizados, em sintonia e generosos uns com os outros. O filme inova em detalhes que reforçaram a intenção da obra: O sutil humor, a cena do altar, o bouquet da Clessy para Alaíde, o Pedro como o "autêntico cafajeste rodrigueano"...

Marília Pêra trouxe para madame Clessy um humor inexistente ao texto, sob direção de Joffre Rodrigues que, também, em outros momentos, foi o responsável por inovar com pitadas de humor no filme. Levemente sarcástico, um humor ao estilo Nelson Rodrigues. 
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Em um dado momento, o palitinho cai da boca de Pedro quando ele vê Alaíde simulando ser madame Clessy, mas “recalca” o desejo e a repreende por seu comportamento “imoral”. Ele a queria como a esposa de seu projeto de vida machista.
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Alaíde, por sua vez, quer fugir da repressão moral em que vive, se refugiando no plano da alucinação, mas no seu sonho de liberdade - de ser uma prostituta de classe -, se entregaria a Pedro (o cliente do bordel tem o rosto de Pedro), pois ela queria Pedro, mas não na vida que levava. Como prostituta de sua fantasia, ela acreditava poder alcançar a sonhada liberdade estando, ao mesmo tempo, com seu amor Pedro. 
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Nesse embaraço da fuga pelo "inconsciente", Alaíde cai em outro engano. Ela se refugia no mundo da alucinação, o mundo que desejava, mas quando está nesse mundo, tenta buscar sua vida de volta, já que não consegue viver sem um passado. Estava presa à sua realidade frustrante, motivada por sentimentos viciosos, dos quais não conseguia se desfazer, mesmo quando pensava estar realizando seu projeto de liberdade e amor. (visão de mundo pessimista). Posteriormente, o gesto na entrega do buquê à Lucia, simboliza que Alaíde perdoou a irmã e finaliza sua relação com o passado. Em seguida, Clessy tem uma atitude de generosidade, amizade e piedade para com Alaíde, entregando outro buquê à ela, indicando que, finalmente, Alaíde seguirá adiante. .
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A cena do nu no hospital foi bastante comentada, no sentido de que muitas pessoas se revelaram por ela chocadas, apesar - e por isso mesmo - de não ter havido nesse nu, nenhum erotismo. Chocou, logo, e irrefletidamente, pois foi um nu de morte. Quando os médicos tiraram a roupa de Alaíde no hospital, de um modo pragmático, rápido e frio, em meio a conversas banais entre pares, enquanto Alaíde gemia em delírios, ela se assemelhou a um objeto. O público é provocado, portanto, à imagem de uma "autópsia" em vida e, quando, sob tal contexto, um dos médicos diz: “bonito corpo”, a percepção de Alaíde como mera carne, fica desagradavelmente explícita.  Ou como diz Nelson Rodrigues:
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Não há nudez mais humilhada, mais ofendida, mais ressentida que a da autópsia. Velhos, moços, meninas, mocinhas, garotos, todos são espantosamente despidos. Ficam tão nus.

Já o nu na cena do bordel (imaginação da Alaíde), cheio de erotismo, não chocou. Ao contrário, a percepção da cena, no geral, levantou referências à sua beleza. Dessa vez, foi um nu de amor e não de morte.
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No final, enquanto se passam os créditos, ecoa-se a fala de Alaíde: “Ou Ave-Maria de Gounod ou de Schubert, outra não serve”. A música de fundo, junto à voz de Alaíde justo depois que, já morta, passa o buquê para Lúcia, referencia, em um ato de resignação e com toda a ternura e angústia possíveis, a aceitação de suas mortes:  a perda de um sonho - um projeto de casamento "perfeito" acabado - e a morte propriamente dita. .

A adaptação para o cinema traz um ganho nos detalhes, e seus respectivos significados, que realçam e potencializam a obra original, mas é preciso estar com o paladar bem apurado para apreciá-los. 



Vestido de Noiva _ Trailer:


Colorido, só no teatro!

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