11/08/2009

Colorido, só no teatro!

Imoral era Nelson ou a vida que ele teve o des/prazer de observar pelo buraco da fechadura? A vida como ela é, com ou sem aspas, foi conhecida e reconhecida por ele e por todos os que leram suas obras. E se, com todo o holofote colocado por ele na "sujeira" humana, ele conseguiu que o ser humano cometesse menos "pecados", que "se salvasse" por meio de uma catarse, não sabemos. Sabemos que a vida, vista por ele de forma nua e crua, com suas ditas mazelas humanas, nos foi assim re/apresentada na aposta, segundo Nelson sugere, de que "A ficção para ser purificadora precisa ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de todos nós"Desta forma, ao nos (re)apresentar "a vida como ela é", atenuada pela beleza e a poesia de sua literatura, nos convidaria a uma depuração em um lançar mão da catarse defendida, enquanto admiramos, amamos ou odiamos os personagens vivos e mais humanos do que nunca, no palco, no cinema, nos livros, na nossa imaginação... 

09/08/2009

VESTIDO DE NOIVA, de Joffre Rodrigues - A belíssima adaptação da peça mais famosa de Nelson para cinema

A adaptação do roteiro foi uma junção entre a prioridade na fidelidade ao texto com o fazer cinema. Além disso, desde que Ziembinski adaptou a obra para os palcos em 1943, tendo, para isso, inovado em técnicas de iluminação a fim de dar conta com fidelidade aos três planos que constituem a obra, ninguém mais havia se atrevido a tentar. 

Importante notar que o início do filme é também o início da vida na casa (que é um tema importantíssimo da obra), inclusive sendo mobiliada. Começa o filme, começa a vida na casa. A poesia e a leveza do plano da alucinação é o ponto mais forte da obra, pois é o que buscava a "alma" de Alaíde e ela foi atendida no filme, enquanto buscava legitimar seus sonhosO peso da realidade foi bem dosado, mesmo atendendo, e muito bem, a um subtexto extremamente realista. A memória mostra as "baixas" motivações das personagens e a visão bem humorada das situações desagradáveis foi uma opção genial, que não mudou o caminho do texto, mas a forma de contar. Ótimas músicas no bordel, com roteiro cheio de detalhes significantes, percebidos não só de uma vez, mas a cada reprise do filme, encantando por seus significados. Belíssimos elenco e direção de atores, que estão harmonizados, em sintonia e generosos uns com os outros. O filme inova em detalhes que reforçaram a intenção da obra: O sutil humor, a cena do altar, o bouquet da Clessy para Alaíde, o Pedro como o "autêntico cafajeste rodrigueano"...

Marília Pêra trouxe para madame Clessy um humor inexistente ao texto, sob direção de Joffre Rodrigues que, também, em outros momentos, foi o responsável por inovar com pitadas de humor no filme. Levemente sarcástico, um humor ao estilo Nelson Rodrigues. 
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Em um dado momento, o palitinho cai da boca de Pedro quando ele vê Alaíde simulando ser madame Clessy, mas “recalca” o desejo e a repreende por seu comportamento “imoral”. Ele a queria como a esposa de seu projeto de vida machista.
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Alaíde, por sua vez, quer fugir da repressão moral em que vive, se refugiando no plano da alucinação, mas no seu sonho de liberdade - de ser uma prostituta de classe -, se entregaria a Pedro (o cliente do bordel tem o rosto de Pedro), pois ela queria Pedro, mas não na vida que levava. Como prostituta de sua fantasia, ela acreditava poder alcançar a sonhada liberdade estando, ao mesmo tempo, com seu amor Pedro. 
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Nesse embaraço da fuga pelo "inconsciente", Alaíde cai em outro engano. Ela se refugia no mundo da alucinação, o mundo que desejava, mas quando está nesse mundo, tenta buscar sua vida de volta, já que não consegue viver sem um passado. Estava presa à sua realidade frustrante, motivada por sentimentos viciosos, dos quais não conseguia se desfazer, mesmo quando pensava estar realizando seu projeto de liberdade e amor. (visão de mundo pessimista). Posteriormente, o gesto na entrega do buquê à Lucia, simboliza que Alaíde perdoou a irmã e finaliza sua relação com o passado. Em seguida, Clessy tem uma atitude de generosidade, amizade e piedade para com Alaíde, entregando outro buquê à ela, indicando que, finalmente, Alaíde seguirá adiante. .
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A cena do nu no hospital foi bastante comentada, no sentido de que muitas pessoas se revelaram por ela chocadas, apesar - e por isso mesmo - de não ter havido nesse nu, nenhum erotismo. Chocou, logo, e irrefletidamente, pois foi um nu de morte. Quando os médicos tiraram a roupa de Alaíde no hospital, de um modo pragmático, rápido e frio, em meio a conversas banais entre pares, enquanto Alaíde gemia em delírios, ela se assemelhou a um objeto. O público é provocado, portanto, à imagem de uma "autópsia" em vida e, quando, sob tal contexto, um dos médicos diz: “bonito corpo”, a percepção de Alaíde como mera carne, fica desagradavelmente explícita.  Ou como diz Nelson Rodrigues:
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Não há nudez mais humilhada, mais ofendida, mais ressentida que a da autópsia. Velhos, moços, meninas, mocinhas, garotos, todos são espantosamente despidos. Ficam tão nus.

Já o nu na cena do bordel (imaginação da Alaíde), cheio de erotismo, não chocou. Ao contrário, a percepção da cena, no geral, levantou referências à sua beleza. Dessa vez, foi um nu de amor e não de morte.
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No final, enquanto se passam os créditos, ecoa-se a fala de Alaíde: “Ou Ave-Maria de Gounod ou de Schubert, outra não serve”. A música de fundo, junto à voz de Alaíde justo depois que, já morta, passa o buquê para Lúcia, referencia, em um ato de resignação e com toda a ternura e angústia possíveis, a aceitação de suas mortes:  a perda de um sonho - um projeto de casamento "perfeito" acabado - e a morte propriamente dita. .

A adaptação para o cinema traz um ganho nos detalhes, e seus respectivos significados, que realçam e potencializam a obra original, mas é preciso estar com o paladar bem apurado para apreciá-los. 



Vestido de Noiva _ Trailer:


10/07/2009

Inspirado nos contos de Nelson Rodrigues...


FIDELÍSSIMA


AMADEU - Essa é séria mesmo. Como essa nunca vi!
Nelsinho, que era experiente e entendia de mistérios como ninguém, profetizava ao amigo:
NELSINHO - Mulher séria até existe, mas nessa aí eu não acredito.
AMADEU - Por quê? Como assim? Você não a conhece... ou conhece?
(Pausa. Nelsinho acende o cigarro, joga fora o palito de fósforo e diz):
NELSINHO - Conheço o marido. É o seguinte: Num casal, há fatalmente um infiel, compreendeste? Ou a mulher ou o marido.A existência de uma vítima é inevitável. E aquele sujeito tem vocação para marido enganado.
Amadeu, convicto do comportamento da amada e, no fundo, maravilhado por essa virtude, continua:
AMADEU - Estou te dizendo! Com ela ninguém consegue nada. E com aquela carinha rapaz, de que sabe tudo. Ah... Com aquela carinha de anjo e aquele olhar de fêmea! Quem diria... Não trai em hipótese alguma. E eu fiquei que nem bobo. Pasmo!
(Nelsinho bate no ombro de Amadeu e ri. Amadeu insiste):
AMADEU - Você não acredita! (balança a cabeça, pensativo) Mas quem acreditaria… (pensativo) parece que nasceu pro pecado e quando chega a hora, nada acontece. Firme como o pão de açúcar ela disse não.
NELSINHO - Tá jogando contigo, meu caro, não percebe?
AMADEU - Você ta dizendo isso porque não viu. Não te culpo, eu mesmo não acreditaria. Nunca podia imaginar que alguém se transformasse tanto, de um minuto a outro. Quando tentei beijá-la, ela quase deu um pulo. Toda aquela sensualidade, aquela mistura deliciosa de ingenuidade e pecado, acabou numa frieza de levar qualquer um pro fundo do poço.
NELSINHO - Guarde minhas palavras, meu amigo: Só confie na fria, só na fria. E a tua pequena não é fria nem aqui nem na conchichina. É doce e triste. 
AMADEU - E linda! Mais ainda: é interessante! Sabe cativar qualquer um. Poderia ter quem ela quisesse. É a Glória, literalmente, mas jura que é fiel e que não abre mão de ser assim. Fazer o quê? Me afirmou isso numa frieza aterrorizante. Daí veio minha convicção. A transformação dela não me deu outra escolha, senão acreditar. Paciência! Cheguei a pensar: Não é possível... Será que me enganei? Será que ela é fria? Vai ver que foi fria até mesmo na lua de mel...
NELSINHO - Vai por mim. Tem coisa aí...
AMADEU - Não... Ela é fiel sim. O marido é que tem sorte. Desgraçado sortudo! Já me imaginei dizendo a ele: Você, seu desgraçado, é um cara de sorte!
À noite, em casa, Nelsinho estava pensativo. Dizia de si para si, diante do espelho: “Aí tem dente de coelho”. Era inevitável a curiosidade que o dominava. Decidiu:
NELSINHO - Eu vou matar essa charada!

A Glória

GLORINHA - Já te disse, Amadeu. Se você quer apenas uma amizade despretensiosa, tudo bem. Mais que isso não. Nunca!
AMADEU - Mas o que é isso, Glorinha? Sou tão terrível assim? Você me tira do caminho, sem mais nem menos. Me acha feio, é isso? Tá certo, não sou nenhum príncipe, mas não sou tão asqueroso assim.  Ou me acha velho? Sou mais velho que você. Claro, tem rapazes da sua idade, mais bonitos e mais interessantes do que eu...
GLORINHA - Pára com isso, Amadeu. Sou fiel, é só isso. Não importa se é bonito, feio, velho ou novo. (irritada) Apenas sou rigorosamente fiel. Dá pra entender isso? Você me olha como se eu fosse de outro mundo. Um ET. No outro dia chegou a me chamar de fria. Ora bolas! Só há dois extremos?  Ou você é fria ou uma... (baixa a voz) puta? Não sou fria se é isso que você quer saber. Eu gosto! E muito até!
AMADEU - Não gosta comigo. É isso.
GLORINHA - (Convicta) Não adianta vir com esse papo. NADA me fará mudar de opinião. Sou fiel e está acabado. Se insistir, a nossa amizade acaba aqui. (Pausa. Amável) Poxa Amadeu, será que não pode haver amizade entre um homem e uma mulher? Só te peço isso, uma amizade despretensiosa. Acredite que cultivei ao longo de todo esse tempo um carinho enorme por você... Rimos juntos, tivemos uma afinidade... ou não? Para mim, é fato, somos amigos. (Pausa) E só.
AMADEU - Tá bom, não precisa ficar jogando eternamente isso na minha cara. Eu já sei que não sou bom o suficiente pra você e páreo pras suas conquistas.
GLORINHA - Olha aqui Amadeu, não admito...
AMADEU - Tá certo. Você me desculpe. Me excedi. Acho que teu negócio é seu marido mesmo.
(Glorinha silenciou. Amadeu finaliza):
AMADEU - Esse assunto morre aqui.
(Glorinha sai e deixa Amadeu pensativo).
De fato, nunca mais tentara uma aproximação carnal de Glorinha. Manteve a amizade a custa da insistência da amada e embebedava-se cada vez mais. 

A notícia

Certo dia, Amadeu estava no bar de costume e chega o amigo.
NELSINHO - Amadeu, se prepara meu caro, tenho uma bomba pra ti.
AMADEU - Mas o que é?
NELSINHO - Eu te disse que havia alguma coisa de errada nessa história. Eu nunca erro. Eu senti. (Ri) Farejei. Eu disse que a fidelidade de sua Glória não me convencia. (Vaidoso) Disse ou não disse?
AMADEU - Ô Nelsinho, qual é, se tem alguma coisa pra dizer diz logo que esse mistério é pior que qualquer coisa...
(Amadeu voltou pra sua cerveja).
Nelsinho olha Amadeu em silêncio, como se, em vão, tentasse escolher as palavras. Enche, para si, um copo de cerveja e diz:
NELSINHO - Sua Glorinha tem um amante.
(Amadeu levanta-se da cadeira, em câmera lenta, quase sem ar).
Faz a pergunta patética:
AMADEU - O quê?
NELSINHO - Sua pequena tem um amante.
(Amadeu senta de novo, ainda com falta de ar.).
Nelsinho vaidoso com a sua habilidade no assunto, não percebe que o amigo passa mal. Continua:
NELSINHO - Nunca acreditei nessa fidelidade. É ou não é? A mim ninguém passa pra trás. (Ri ignobilmente) A mulher pode ser infiel ao marido, mas ao amante, nunca!
Amadeu, já refeito do choque e mais furioso do que nunca, levanta e exige:
AMADEU - O endereço. Quero o endereço, horário, dia do encontro, tudo.
(Nelsinho anota tudo no papel, dá ao Amadeu que lê e exige):
AMADEU - O nome, o nome do desgraçado!
NELSINHO- Armando. (Com ironia) Conhecido por ela como Armandinho.
AMADEU (Com ódio) – Armandinho!
Amadeu deixa o amigo na mesa e sai, numa pressa e impulsividade que só os traídos conhecem.

(Amadeu está em casa e pega o revólver na gaveta. O contempla por um tempo e sai.).

O flagrante

(O casal está se amando).
AMADEU (arrombando a porta) – Cínica! Cínica! Não é fiel a teu marido coisíssima nenhuma!
(Amadeu está com a arma apontada pro casal, que se cobre rapidamente com o lençol).
GLORINHA (Glorinha se levanta, em pânico) – Que isso, Amadeu?! Abaixa essa arma!
(Armandinho se esconde atrás da Glorinha)
ARMANDINHO - Peraí... peraí… Vamos ter calma... vamos conversar...
(Amadeu aponta a arma para Glorinha)
AMADEU – Ou você trepa comigo também ou eu te mato!
(Com uma calma assustadora, ela da um passo à frente e encosta a cabeça na arma. Amadeu, dessa vez, recua assustado).
GLORINHA - Então, você vai ter que me matar porque, viva, eu não vou transar com você!
Amadeu mete um tiro na própria cabeça.


Autora: Geórgia Damatis.


09/06/2009

Os personagens são mais reais que nós mesmos.


"Manuel Bandeira chegou pra mim um dia, quando eu e meus personagens éramos odiados, e disse:' Nelson, por que você não faz uma peça em que os personagens sejam assim como todo mundo?' Eu respondi da forma mais singela: 'Mas meu caro Bandeira, meus personagens são como todo mundo.' Porque uma coisa é verdade: quem metia ou mete o pau no meu teatro está procedendo como um Narciso às avessas, cuspindo na própria imagem." 
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Nelson nos apresentou seus personagens, muitas vezes, no limite da "loucura", cujo abandono de uma habitual máscara social podia repentinamente dar lugar à uma "sinceridade insana", conforme eram testados pelas circunstâncias. Retratou a vida como ela era, despertando a ira dos (segundo ele) mais pervertidos, que se viam nus e desprotegidos ante milhões de olhos do mundo. Em suas palavras:
"... os realmente virtuosos, gente honesta pra burro, esses é que gostavam das minhas peças. Falavam comigo, adoravam o texto... Mas as depravadas tinham um santo horror. Isso aprendi com o meu teatro."
 

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Colorido, só no teatro!

Imoral era Nelson ou a vida que ele teve o des/prazer de observar pelo buraco da fechadura? A vida como ela é, com ou sem aspas, foi conh...